A Confraria dos Nove
Haviam várias lâmpadas na sala, mas todas tão fracas, que davam uma impressão mais de penumbra do que claridade. E nem precisavam de tanta luz assim, pois se conheciam pelas vozes, pelas expressões utilizadas ao falar e, muito mais do que qualquer coisa, pelo assunto que corria por ali. Era único: gol.
Não se trata de nenhum clube do bolinha, recanto machista ou algo semelhante. Era algo tão restrito que sequer as famílias sabiam, fossem esposas, filhos ou mães, até porque a irmandade só se reunia em condições bastante especiais ou graves. Era a Confraria dos Nove. Apenas aqueles que tiveram o privilégio de vestir a camisa 9 da seleção brasileira eram aceitos. Ronaldo, campeão e artilheiro da Copa do Mundo em 2002 teve a ideia junto com seu antecessor, Romário.
O negócio é tão restrito que mesmo Bebeto, primeiro e único maior companheiro de Romário, não foi aceito. “Ele não era nove”, disse o Baixinho, ao ser indagado por Careca, uma vez, embora o próprio Romário não tivesse a usado. “Eu fui mais nove do que todos vocês, ahahahahahah, estava sempre dois segundos à frente dos zagueiros. Por isso só eu posso”.
A reunião em questão era das mais importantes — e preocupantes — para nossos heróis. Tratava-se justamente da falta do camisa nove na seleção atual. Claro que ele existia, mas em nenhum momento fora sequer uma sombra da tradição quase secular de centroavantes, uns técnicos, outros velozes, alguns de força e valentia extrema, mas todos com faro inigualável por gols.
Por isso, no dia 28 de julho de 2019 uma exceção foi aberta: pela primeira vez seria recebido na sala um jogador que ainda vestia a camisa nove da seleção: Gabriel Jesus.
Ronaldo foi o primeiro a falar:
- Estamos recebendo o Gabriel porque ele precisa explicar o que está acontecendo. Isso não é normal. São oito jogos por competições oficiais sem gol. A gente sabe que o time não tem o mesmo futebol das eliminatórias, mas está acima do limite de qualquer um. Até o Fred, ali, que passou a Copa de 2014 mais congelado que o Capitão América, fez gol.
Fred apenas riu sem graça com o canto da boca, não era doido de contrariar o chefe.
O Fenômeno estava tão indignado que não se furtou a fazer até piada consigo mesmo.
- Até eu, que joguei a Copa de 2006 com 120 quilos consegui fazer três! E um de cabeça, eu nem sei cabecear!
Gabriel Jesus, sentado numa cadeira dura de madeira, esfregava as mãos, coçava o nariz e só olhava para os próprios pés, como se culpando-os pelo jejum, que aliás, já começava a tomar o lugar de seu segundo nome santo: Gabriel Jejum.
- Eu não sei o que está acontecendo, eu não sei. Eu vejo o goleiro se movimentar, a bola está chegando. Quero muito fazer o gol, mas na hora a bola não vai e…
- Ela não tem vida própria, meu rapaz, ela vai para onde sua cabeça ordena. Os pés são apenas a extensão da cabeça — disse, paternalmente, Tostão, interrompendo o mais jovem.
- Eu treino, juro que treino, faço tudo direitinho. Não sei mais o que fazer! — tornou o rapaz.
Ronaldo voltava a carga. Quanto mais se aborrecia com as evasivas de Gabriel, seu tom de voz mudava do tradicional anasalado para um rouco profundo.
- Eu sei o que você deve fazer, o que todo mundo aqui fazia: gol! O que não pode é jogar nossas camisas na lama, desse jeito você vai se tornar um insulto para a camisa nove.
Nesse momento ele mostrou a Gabriel a mesa forrada com camisas nove da seleção de diversas épocas, desde a branca até do próprio GJ usada na Copa da Rússia, em 2018.
Pela primeira vez, Gabriel levantou a cabeça e viu o tanto de gente que rodeava a mesa. Espantou-se ao notar que alguns estavam — ou deveriam estar — mortinhos da silva. Ao menos era isso que ele lembrava das inúmeras reportagens que vira no período pré-Copa, lembrado quem fez o quê e em que época pela seleção brasileira.
Foi aí que ele lembrou de que alguns também ficaram em dívidas iguais ou semelhante à dele.
- Tu, Serginho, com aquele timaço de 1982, fez só dois, num era pra ter feito mais, não?
- AHAHAHAHAHAH!!!!!! Menino, eu nem devia ser titular. Tinham esses três na minha frente, disse, apontando Reinaldo, Careca e Roberto Dinamite — Não tenho nada a ver com isso, a vaga quase caiu no meu colo, esses caras estavam bichados, AHAHAHAHAHAHAHAH!!!!
O trio indigitado nem se alterou. Já haviam discutido demais com o velho companheiro e sabiam que ele iria fazer essa troça sempre, embora soubesse o quanto é difícil a vida de boleiro. Ronaldo, que fazia um papel meu duplo de promotor e juiz, encarnou uma espécie de advogado de defesa.
- Vamos voltar ao que interessa. Temos que procurar o problema e oferecer uma solução, o que não pode é continuar desse jeito. Tenho certeza de que ninguém aqui quer perder pra essa Argentina capenga em pleno Mineirão numa semifinal, né?
Todos concordaram.
Romário:
— Peixe, tu tem que entrar na área como se fosse a cama de um motel e tivesse uma mulher bem gostosa de esperando. Essa cama é a barra, saca? A área é lugar mais agradável para o centroavante. Quando eu te vejo entrando na área parece que tá indo pra guilhotina!
Tostão:
— Gabriel, você precisa antecipar o movimento dos seus marcadores e dos seus companheiros que vêm com a bola dominada. Você joga mais de costas para o gol, precisa formular seu movimento antes da bola chegar, tem que pensar na frente deles, assim quando ela chega, a situação é toda sua.
Vavá:
— Foco na bola e no gol, são os dois objetos que você nunca tem que perder de vista. Não desgruda da bola, tem que meter o pé nela esteja quem estiver do seu lado, à sua frente ou atrás, não pode ter medo de cara feia.
Quem fez a cara feia foi o próprio Gabriel:
— Mas o senhor morreu!
Vavá retornou, didático:
— Eu não morri rapaz. Nem eu nem outros que estão aqui e você acha que já se foram. Nosso espírito está naquela camisa, naquele número cada vez que alguém que veio depois de nós venceu um goleiro, balançou as redes. Estaremos sempre aqui para ajudar não apenas você, mas todos os outros que virão depois. Olha só, aquele ali com um cigarro na mão alisando o cabelo, é Heleno de Freitas. Ele era como eu, não tinha medo de encarar qualquer zagueiro, mas tinha técnica mais apurada. Bebia mais que o Adriano, mas tinha uma vontade de fazer gol que era fora do normal, passava por cima de qualquer um.
Ademir apontou seu queixo enorme para Gabriel Jesus:
— Tem que ser mais objetivo. Tá com a bola na entrada da área, arranca para o gol, todo mundo vai ter medo de encostar em você.
- O Ademir tá certíssimo, disse Careca. Você não tem a capacidade do Ronaldo de driblar num espaço curto, tem que pensar rápido: recebeu, chutou. Centroavante que é centroavante, chuta.
Ronaldo se envaidecia quando era lembrado pelas qualidades, o que, convenhamos, era quase uma regra acontecer, mas o papel de presidente o impedia de dar seus toques. Mas levantou a cabeça como se procurando o outro extremo da mesa, para ouvir a última recomendação. Perguntou:
- O Padrinho quer falar alguma coisa?
Do outro lado um halo de luz iluminou o rosto sorridente de Leônidas da Silva. Diamante Negro ou Homem-Borracha se preferirem. O apelido de Padrinho era mais do que justo, afinal fora ele o primeiro a imortalizar a fama dos centroavantes brasileiros. Veio andando devagar e encostou-se na mesa, de pé, bem perto de Gabriel Jesus:
- Olha pra mim, menino, não mordo.
Difícil era saber se o medo dele era maior pela aparição ou do que ouviria.
- Gabriel, eu queria te ver bem de perto para constatar uma coisa — começou Leônidas. — Não tiro nenhuma observação que já foi feita aqui, mas antes de trabalhar todos esses conselhos é preciso mudar algo que você nunca vai ver quando estiver em campo.
- O quê -, perguntou o jogador, aflito.
- A sua expressão quando joga, parece que você está chorando. E quando perde um gol eu tenho certeza absoluta de que você chora.
- Eu fico decepcionado, né? O senhor também não ficava quando perdia gol?
- Não, eu não ficava e tenho certeza de que quase todos que estão aqui também não ficavam. Eu ficava irado, com raiva, querendo matar alguém…
- Se eu tivesse outro de mim em campo numa hora dessa teria matado a mim mesmo umas 15 vezes -, interrompeu Heleno de Freitas — Quando perdia gol precisava descontar em algo.
- Pois é, — tornou Leônidas — O que eu vejo é que você não joga com raiva. Não de querer ferir ou matar o adversário, mas é a raiva de quem está na sua frente e te impede de fazer o gol. Você não pode entrar na área com essa cara de choro, tem que entrar com sangue no olho, faca no dente, cuspindo fogo, seja qual for a expressão que vocês usem hoje em dia.
E continuou:
- Essa raiva vai te mover, vai te empurrar como você nunca viu. Quando você marca gol, diz ‘Alô mamãe’. Sua mãe é uma guerreira, a gente sabe, mas dedica o gol a ela quando o jogo acabar. Você tem que soltar é um PORRA! que até o vendedor de cachorro-quente do lado de fora do estádio vai escutar. Não vai ser apenas fechar a cara com a bola no pé, tem que pensar que aqueles do outro lado não vai deixar você se divertir. O que você sentia quando os meninos mais velhos tomavam a bola de você?
- Queria acabar com eles.
- Pois lembre-se disso. Aqueles caras que estão do outro lado com a roupa diferente da sua são esses meninos mais velhos. Eles querem tomar sua bola e furá-la. Você vai deixar?
- não…
- Fala alto, porra! -, Romário perdera completamente a paciência.
- NÃO, CARALHO!!!
Ronaldo sorriu:
- Isso, é assim que se fala. Ninguém do outro lado é seu inimigo, mas eles não querem que você se dê bem, tem que ir pra cima deles e não deixarem eles tomarem a sua bola. O goleiro tá ali? Chuta pra ele entrar com bola e tudo.
Gabriel sorria, mas agora um riso solto, quase malicioso, de quem já sabia o que iria fazer.
- Tô entendendo, tô entendendo…
- Gabriel! Gabriel! — Daniel Alves o sacudia.
- Que foi?
- Tava sonhando, rapaz? Primeiro, grita ‘não, caralho’, depois solta um ‘tô entendendo’ e rindo. Tava sonhando com quem, com o quê? — perguntou o companheiro de quarto.
- Nada não, Daniel, tava sonhando com a semifinal de amanhã.
- Relaxa, cara, tem que dormir relaxado para estar bem pro jogo.
- Relaxado nada, não aguento mais esperar a hora desse jogo começar.