A Espanha virou refém de si mesma

Wladmir Paulino
3 min readDec 7, 2022

--

Fifa.com

Sim, trocar passes é construir um jogo, ter a bola é importante, pois sem ela nos nossos pés não fazemos gols. O problema é que a Espanha levou isso a um paradoxo. Ter a bola tornou-se mais importante do que o gol. E todos sabem que o gol é o princípio e o fim de tudo no futebol. O que acontece desde 2018 e repetiu-se agora, ainda mais perigosamente, por tratar-se de um grupo jovem, é que o futebol espanhol virou refém de si mesmo. É absolutamente urgente que a formação dos jogadores daquele país sofra uma modificação sob pena de perder mais espaço.

Mudar a formação dos jogadores não implica em passar a negar o que lhe trouxe fama. É necessário acrescentar. Os formadores desses jogadores precisam entender que há algo fundamental na execução de qualquer esporte de rendimento: criatividade. Esse elemento anda cada vez mais escasso nos campeões de 2010.

O jogador espanhol de hoje não dribla, sendo essa a maior manifestação da criatividade no jogo de bola. E o que é pior: sequer tenta driblar. São mestres no passe curto ou longo, no posicionamento ofensivo. Os passes até quebram as duas primeiras linhas, porém, quanto mais perto do gol, mas a necessidade de surpreender o adversário. E aí…

Os clubes espanhóis talvez sejam os melhores formadores de meio-campistas do mundo. Mas ‘compensam’ como um dos piores formadores de atacantes. E é histórico, se formos dar uma olhada na linha do tempo e resgatar as bases da posse de bola espanhola, plantada por Cruyff no Barcelona do início dos anos 90.

A semente foi plantada com virtuosos na equipe, que, com toda justiça, recebeu a alcunha de Dream Team: Ronald Koeman, Laudrup, Bakero, Guardiola (sim, o Pep). Era um time que não abria mão da bola. Mas no terço final sempre teve gente qualificada para não dar um passe a mais e sim tentar o gol. Stoichkov e Romário.

O supra-sumo dessa filosofia viria na virada da primeira para a segunda década do século atual. A posse de bola era cada vez mais cantada em verso e prosa pelo Barcelona de Guardiola (agora na função de treinador), mas havia uma flecha para esse arco perfeito: Lionel Messi.

O sucesso de um time quase imbatível ecoou nos quatro cantos do país — tá bom, vamos admitir, no mundo. Chegou ao ponto de torcedor de time chamar de injusta a sua derrota porque teve 60% de posse de bola. O gol, aquele em torno do qual tudo girava, era rebaixado à condição de mero coadjuvante.

A própria Espanha campeã do mundo já avisava que não estava muito preocupada em atacar. Quando finalmente ganhou a Copa na África do Sul, o fez aos trancos e barrancos, com quantidade indigente de gols: 8, o pior número entre todos os vencedores de copas. Só havia um jogador com um pouco mais de afinidade com as redes , o atacante Davi Villa — marcou cinco. Drible, só com Iniesta.

O sucesso também pode, e deve, ser questionado. Mas não foi, afinal, o time já havia vencido a Euro dois anos antes e repetiria a dose dois anos depois. O Barcelona manteria seu reinado durante esse mesmo período.

E todo mundo querendo só a bola. A ambição de vencer dando lugar ao sentimento de posse. E os gols cada vez mais longe. Eliminação na primeira fase quatro anos depois, com direito a tomar goleada da Holanda. Saída precoce na Rússia e novamente no Catar. Os 7x0 na Costa Rica foram fruto mais da fragilidade do adversário do que do tesão em fazer gol.

O futebol espanhol precisa admitir, não que errou, mas se deixou levar por uma meia-verdade, que, diga-se de passagem, nunca foi defendida por seus mentores. O já citado Cruyff sempre teve gente com faro de gol e habilidosa lá na frente. Quem duvidar basta dar uma olhada nos gols de Romário pelo Barça. O próprio Guardiola já foi mais direto possível: “tikitaka é uma porcaria”. E provou isso mesmo quando foi para o Bayern de Munique: exigia drible, velocidade e gols de seus jogadores, principalmente os mais avançados.

A posse de bola, que é um meio, foi pervertida para um fim. E está sendo o fim para a Espanha. É bem provável que ela tenha a bola por muito tempo, ainda. Mas vai sempre levá-la para casa mais cedo.

--

--