A realidade infectada

Wladmir Paulino
4 min readMay 8, 2020

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Enlouquecer tem várias faces, cada uma com a expressão de seu maluco. Agora, no momento de maior exceção dos últimos cem anos, não é fácil manter-se mentalmente sadio. O confinamento, por si só, já nos empurraria sem muita dificuldade a compartimentos trancados a sete chaves de nossas mentes, porém, com a prestimosa colaboração da facilidade à informação, as portas não foram abertas, mas arrombadas dia após dia. Cada situação com sua característica, nos geram dores, tensões, ansiedades e medos até pouco tempo atrás inimagináveis — se é que existe tempo atrás.

Home office, por exemplo, é de tirar do sério qualquer cidadão. É irritante, doloroso e falso. Explicando aqui esse ‘falso’: por mais que você trabalhe, e muita gente tem trabalhado bem mais nesse modelo, do que no tradicional, a sensação é de que não fez muita coisa. Na verdade, quase nada. Motivo? Não há nenhum meio de mensuração.

“Ô, idiota!”, dirá você, “É só contar quantas tarefas você produziu e comparar com o que era feito no office sem home. É subjetivo, como tudo quando se trabalha em casa. Não há o barulho característico de outras pessoas fazendo a mesma coisa ao seu lado — no home office o barulho, normalmente, é até maior em volume, mas não dá a sensação de produzir. Você está largado num sofá, na cama ou até no chão, nunca no lugar tradicional, a mesa e a cadeira. E essa fuga do tradicional entorta teu pescoço, trava as costas e provoca dormência nos pés. Aí entra a piração: o sujeito se irrita, começa a ver e imaginar coisas: “estão todos contra mim, ninguém me deixa fazer nada. Eu nunca consigo fazer nada! Dor é um tremendo gatilho para qualquer um perder a razão e a síndrome do pânico está aí para não me deixar mentir.

Mas tem outras formas de pirar. Com tudo parado, ou suspenso, como queiram, fomos inundados por uma sensação de elasticidade do passado. Parece que o último dia de aula foi há séculos, os hábitos de antes da pandemia sumiram solenemente da nossa memória coletiva. Ninguém lembra mais a última vez que passou uma hora sem lavar as mãos, por exemplo. Apertar a mão de alguém, meu Deus do céu, o que é isso?

É como se ontem e amanhã não existissem. É só hoje. ‘Hoje vou sair e aproveitar para resolver tudo e não me expor muito na rua’. ‘Hoje morreram 600 pessoas por causa do Coronavírus’. ‘Hoje o presidente disse que o isolamento social tem que ser reduzido para não comprometer a economia’ são algumas das frases presentes.

Agora experimente perguntar a alguém sobre o futuro, por mais próximo que seja. As respostas variam entre ‘Não sei’ ‘Sei lá’ ‘Não faço ideia’. O máximo de concretude que se chega é ‘Quando esse vírus passar’, essa hoje tão vaga quanto ter dito ‘Quando esse vírus chegar aqui’ em dezembro do ano passado.

A confusão temporal já seria agravada, por motivos óbvios, pelo cárcere voluntariamente privado. Horas e horas, dias e dias, semanas e semanas — possivelmente meses — entre as mesmas quatro paredes avivam ainda mais as cores da letargia, da estagnação, da imobilidade. Some-se a isso a programação das tevês, veículo ainda forte o suficiente para embalar nossas ansiedades, medos e esperanças. O negócio atinge um patamar estratosférico nos transportando para um mundo anacrônico ou distópico, as duas definições cabem.

Quem gosta de novela se depara com reprises em todas as faixas, um Vale a Pena Ver de Novo amplo, geral e irrestrito. Quem gosta de futebol já teve que retornar até 1970 para ver os bailes do Brasil tricampeão do mundo. Aliás, o tetra e o penta também foram contemplados, assim como a corrida que deu o primeiro Mundial a Ayrton Senna.

As lives criadas por artistas sertanejos e depois copiadas por todos os estilos são cheias de boas intenções para aliviar a abolição do verbo ‘sextar’. A sensação de claustrofobia é ainda maior. Numa hora em que a televisão seria uma janela para o mundo, uma válvula de escape para se sentir do lado de fora, dividimos nossa sala com Ivete Sangalo de pijama ou entornamos qualquer coisa que contenha álcool na cozinha de Gusttavo Lima.

Quando a necessidade impera e não tem outro jeito a não ser sair de casa, todo e qualquer ser humano que cruze seu caminho é um potencial vetor do vírus. Trombar em alguém sem querer é a coisa mais normal do mundo quando se está num supermercado, absorto olhando as prateleiras. Agora a coisa mudou: encostou, adoece e para não adoecer tome contorcionismo evitando um mínimo de contato. Até olhar virou linha de transmissão. As pessoas só andam de cabeça baixa, olhando para as próprias mãos, vai que é preciso mais uma borrifada de álcool em gel.

Quando alguém te encara, o olhar, varia entre a tensão de estar diante do mensageiro da morte ou a raiva de deparar-se com o soldado inimigo.

Somos jogados para um lado e outro tantas vezes e com tamanha intensidade que os dias da semana parecem um só: domingo, domingo, domingo, domingo, domingo, domingo e domingo. As clássicas perguntas que o imaginário popular atribui a uma vítima de amnésia — ‘Onde estou? Quem sou eu? Que lugar é esse?’ nunca fizeram tanto sentido.

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Wladmir Paulino
Wladmir Paulino

Written by Wladmir Paulino

Jornalista, aspirante a contador de histórias

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