Entrevista com o Coronavírus

Wladmir Paulino
7 min readMay 1, 2020

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Quando a notícia correu os corredores dos grupos de whatsapp seria bem óbvio o descrédito. “Eu vi o Coronavírus na rua!” A mínima condição apontada foi a loucura, seguida de galhofas e memes — a galhofa do século XXI. “O vírus entrou forte demais e começaram a ver coisas”, muitos internautas comentaram, usando as redes sociais. Mas eis que ele dá o ar da graça, sim. Tem a forma que conhecemos nas reportagens de televisão. Aquela bola é a sua cabeça, com várias coroinhas pequenas. Mas os olhos, nariz e boca são semelhantes às da espécie humana. Não tem orelhas. Diz que as coroinhas captam sons e vibrações do ambiente com a mesma eficiência com que ataca as células do nosso corpo. O tom de voz não é alto nem baixo e não se altera em nenhum momento, nem mesmo quando as declarações são mais agressivas, o que, aliás, faz o relato, para quem ouve, ainda mais assustador. Não houve nenhum contato físico, mas a entrevista foi feita com um repórter paramentado com o que há de melhor em termos de proteção. “Não precisa dessa armadura, não vou te infectar dessa forma. Se o fizesse desse jeito você morreria antes de escrever a primeira linha dessa entrevista”. A única exigência foi que nenhuma imagem fosse registrada. “Vocês já sabem como eu sou, além disso posso adquirir a forma que quiser”.

O Coronavírus falou assim sobre seus objetivos, a quem serve, Estados Unidos e Brasil. Confira:

P — De onde você veio?

R — Você deveria saber. Ou melhor, vocês humanos deveriam saber…

Dos morcegos?

Mas quem me colocou nos morcegos? Foram vocês. Na verdade, para responder sobre qualquer coisa a meu respeito basta vocês se olharem no espelho. Vocês fizeram tudo. Foram vocês que me criaram. E digo logo que se acham que vão me destruir estão muito enganados. Sempre estive por aqui e sempre estarei.

Sempre esteve?

Sim. Eu estou aqui desde antes de sua espécie aparecer. Desde que vocês começaram a destruir a minha casa. Vocês não têm consideração nenhuma por nada, nem uns pelos outros nem pelo lugar em que vivem. Tudo tem uma consequência. E eu sou consequência dos erros que vocês cometem desde que saíram das cavernas.

Explique melhor, por favor…

Quando vocês derrubam uma árvore para explorar a madeira, isso tem uma consequência, certo? Quando fazem isso em milhares de quilômetros quadrados há uma consequência muito maior. Na floresta vivem muitos animais, insetos, todos perfeitamente equilibrados. Quando vocês quebram esse equilíbrio, a vida de todos eles muda. Eles crescem diferente, tem que buscar alimento em outros lugares. Muda o ambiente, muda o ser, que vai se adaptando e, dessa adaptação aparecem microrganismos neles. Quando entram em contato com vocês, os destroem. No final das contas não sou nada mais do que a natureza devolvendo a vocês o que vocês dão a ela.

Então, é só pararmos de destruir o meio ambiente?

Não. Vocês também destroem uns aos outros. E a minha principal tarefa é jogar isso na cara de vocês. A pior coisa que uma espécie faz é destruir a si própria, principalmente quando ela é a mais evoluída, é a que supostamente domina o planeta em que vive. Vocês falam muito em “cuidar da nossa casa”, “preservar nosso planeta”. Quem disse que o planeta é de vocês? Vocês é que são dele. Essa espécie de vocês está aqui há 350 mil anos, sabe o que significa isso dentro da escala de tempo do planeta? O ano retrasado. É claro que precisam cuidar do lugar em que vivem, mas se não cuidarem ele mesmo vai dar um jeito de expulsá-los. Quando alguém contrata uma pessoa para limpar a casa e ela não executa o trabalho direito o que acontece? É mandada embora. Aqui é a mesma coisa. Vocês ganharam a concessão de viverem aqui, se não fizerem o trabalho direito serão demitidos.

Como você nos enxerga?

Um bando de ignorantes. Acham que sabem de tudo porque sabem voar, nadar e conhecem até os planetas vizinhos. Mas como podem fazer tudo isso ao custo de outros iguais a vocês. E não falo falo só de agora. Foi sempre assim, desde que aprenderam a controlar o fogo. Quem teve o controle de alguma coisa sempre sacrificou os que não tinham. Ontem foi o fogo, hoje, o dinheiro.

A Europa sempre viveu em guerras, eu estava lá como a peste negra para acabar com um terço da população. Eu fui a cólera, a H1N1; me transformo como eu quiser. Não são só vocês que evoluem. Eu evoluo e vou evoluir sempre.

Por que surgiu na China?

Porque lá tem muita gente, é mais fácil de espalhar. A peste negra veio de lá também. Veja como vocês são autodestrutivos: o presidente dos Estados Unidos me chamou de vírus chinês! (risos). Não tenho nem nunca tive nacionalidade. Sabe o motivo pelo qual estou aniquilando a Itália? Quantos eles aniquilaram há mais de dois mil anos? Quantos? Milhares, milhões, a troco de quê? Poder! É sempre pelo poder, para subjugar os outros, fazerem os outros de escravos, espoliar suas cidades, sempre foi assim. Você não imagina a quantidade de corpos que aquele povo tem nas costas. Eu sou o resultado de todos aqueles que eles mataram. Eu sou a mistura de todo ódio de vocês.

E agora, que o epicentro está nos Estados Unidos?
Pela minha resposta à pergunta anterior acredito que você já desconfie. Os Estados Unidos são a versão atual do Império Romano só que com um potencial assassino ainda maior. Eles matam nas guerras em que se metem o tempo todo, são compulsivos bélicos. Não vivem sem guerra, não vivem sem matar. Matam com mísseis e muito mais com ideias, sanções, bloqueios e embargos. Matam muito mais com guerra de preços, não é essa a expressão que vocês usam tanto quando falam das relações comerciais entre os países?

Muitas pessoas têm se mobilizado ao redor do mundo para criar redes de apoio, financiamento e confecção de equipamentos necessários ao tratamento. Isso não te sensibiliza?
Eu sou um vírus, não tenho sentimentos. Apenas reflito o sentimento dos que me criaram. Quem alimenta meu poder destrutivo não sou eu, são os corpos que habito, são os locais onde me prolifero. Sei que tem muita gente ajudando, mas esses não vão servir como exemplo, eles não terão nome na história. Quando seus netos estiverem estudando o que acontece agora daqui a 50 anos as atitudes nobres de muita gente será relegada a dois, três parágrafos. Quem vai brilhar, como acontece em todos os livros de História, são os líderes, por virtude ou defeito, por sucesso ou fracasso. E o que esses líderes de hoje estão fazendo será diretamente proporcional ao resultado dessa minha passagem.

Isso também é outro ponto que faz os Estados Unidos sofrerem tanto?
Sim. O presidente deles não sabe o que faz. Chegou a me negar, a me diminuir. Depois a realidade bateu à sua porta e recuou um pouco. Agora muda de opinião novamente. Já deu aviso de guerra ao Irã e sequestrou equipamentos, inclusive que viriam para o seu país, o Brasil.

Já que você citou o Brasil, vamos a ele. O presidente é apontado pela comunidade internacional como um dos mais destacados negacionistas do Coronavírus…

Sim, ele é meu maior parceiro, podemos dizer assim. Ninguém me tratou tão bem quanto ele, tanto que até relevei aquele negócio de me apelidar de ‘gripezinha’. Ele quer me ver passeando livremente, fazendo turismo de alto a baixo no País. Como não amar um sujeito desse? E seu povo, que tem fama de acolhedor, superou qualquer expectativa minha. Estão me recebendo de braços abertos. Não entendo como podem fazer protesto por um vírus que mata. Vocês se odeiam demais. Até para alguém como eu isso é surpreendente.

Esse ódio será fatal?
Sim. A carga desse povo é muito pesada. Vocês se odeiam por nada. Se exploram sem dó nem piedade. Aboliram a escravidão há pouco tempo e já querem ela de volta. Olha só como são as relações de trabalho entre vocês. Quando alguns de vocês se dão bem, os outros logo correm para derrubar. Vocês são piores que os norte-americanos. Eles, pelo menos, se protegem, direcionam o ódio para o exterior. Com vocês é o contrário: acham lindo tudo que vem de fora mas não se aguentam olhar no espelho, essa é que é a verdade.

Esse ódio que você cita aumentará sua atuação no País? Teremos muitos mortos?

Já aumentou, aumenta tão rápido que vocês não conseguem detectar. E também estão pouco se importando em fazer isso. Já matei três vezes mais do que esses números que vocês apresentam todos os dias e infectei quatro vezes mais gente. Quem toma conta do seu país é tão simpático a mim que é bem possível que eu ainda saia de bonzinho, Vocês nunca vão saber o tamanho do meu trabalho aqui, nem eu mesmo vou saber exatamente. Um país como o seu, com tanta gente destilando ódio e ressentimento já morreu. Estou apenas colocando em prática. Isso não começou hoje, faz muito, muito tempo. E quando o seu presidente fala “E daí?” ele está me dando uma ordem para continuar meu trabalho sem ser importunado.

Está a serviço de alguém?

(Risos) Bom, logo no início dessa entrevista você me perguntou de onde vim. A resposta também está ali. Vim da própria natureza e como sou consequência do que é feito a ela, estou a serviço dela. Posso dizer que faço parte do serviço de limpeza da natureza. Para ficar mais fácil a compreensão, digo que estou apenas cumprindo regras de higiene. Tá sujo? Limpa. Só que é uma limpeza em escala global porque a sujeira está quase generalizada.

Você sabe que está fazendo muitos ateus acreditarem em Deus?

Sei. Mas lamento informar que Deus, Jeová, Zeus, Olorum, Universo, Grande Natureza ou qualquer outro das centenas de nomes que vocês dão, não vai ajudar.

Como você sabe disso? O conhece?

Se não O conhecesse não estaria aqui. Eu o chamo de Universo. É ele quem estabelece regras. E a regra básica é: sujou, tem que limpar.

Mas ele não tem piedade da humanidade?

Claro que tem, se não tivesse teria acabado com tudo durante a Guerra Fria. Vocês é que não têm uns com os outros. A piedade do Universo só não é dada de mão beijada. Vocês têm que entender qual o seu papel nisso tudo. Como eu também disse no começo: sou criação humana, sou a pior face da humanidade, mas enquanto vocês continuarem me terceirizando, continuarão morrendo.

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Wladmir Paulino
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Written by Wladmir Paulino

Jornalista, aspirante a contador de histórias

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