Ilha de Vera Cruz, 2040

Wladmir Paulino
17 min readDec 23, 2020

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Pouco sobrou do eterno país do futuro, o que vislumbrava ao povo a esperança de, um dia, causar inveja planetária. A maioria culpa o ex-presidente Martim Coelho pelo país ter se tornado um exemplo de tudo que uma nação não deve almejar. A derrocada começou com um isolamento ainda no final do primeiro mandato do então presidente. Os investidores sumiram um a um, poucos países compravam pouco. A dívida interna subiu rápido e alto. O empobrecimento alastrou-se mais rápido do que o fogo que consumiu 70% do Coração Verde, região no norte do país, com a maior floresta do planeta, transformando muitas partes antes cobertas de verde em áreas de deserto. O retrato, inimaginável há 20 anos, era a imagem do terror: um protótipo do Saara nos trópicos.

Esse cenário desembocou numa cultura de violência que muitos analistas internacionais compararam aos períodos de invasões, guerras e perseguições dos primeiros anos da Era Cristã até o início da Idade Média. Na Ilha de Vera Cruz, a partir de 2026, qualquer cidadão com mais de 16 anos, que comprovasse endereço fixo, tinha autorização para possuir e portar uma arma de fogo. As brincadeiras de faroeste ganharam um macabro contorno de realidade. Brigas de trânsito e de vizinhos eram resolvidas, literalmente, na bala.

Os sistemas judiciário e penal entraram em colapso, o que os transformaram num retroalimentador da violência. Como não havia capacidade para julgar tanta gente e as unidades prisionais sem condições de acomodar aquela massa humana, quem abria mão do direito de se armar para fazer justiça com as próprias mãos não teve outra alternativa a não ser entrar na dança, o que gerou mais violência, mais morte e mais gente esperando vaga para ser presa. Uma das soluções encontradas pelo governo foi esvaziar o arquipélago de Fernando de Noronha a retroceder de ponto turístico a prisão, como inclusive foi utilizado entre 1737 e 1939. Além de poder isolar mais gente, a ordem era para constantes chacinas de presos, o que levou o País a dezenas de sanções na Organização das Nações Unidas.

Apesar do início nada promissor, Martim tinha uma fatia considerável da população nas mãos. Prontos a repetir os discursos do líder, o terço fiel conseguiu garantir mais um segundo mandato. À base da força dessa fatia já um pouco mais encolhida, mas com os tentáculos estendidos a todas as polícias militares do país, ele propôs uma emenda constitucional que daria ao povo o direito de escolher se ele poderia disputar uma terceira empreitada. A campanha do que ficou chamada pela oposição de PEC da Ditadura passou, assim como já havia passado antes a proposta de retorno do voto manual.

Mesmo com flagrantes fraudes denunciadas inclusive por organismos internacionais, o terceiro mandato foi confirmado. Mas a partir do segundo ano, a situação tornou-se insustentável. A pobreza generalizada no país ameaçou até quem dela se aproveitou para enriquecer. O consumo praticamente parou porque quem trabalhava só o fazia para comer. Quem produzisse qualquer coisa que não fosse comestível, quebrava. Isso minou as duas bases de apoio do presidente: o poder econômico, sem condições de se sustentar sem consumo e as forças de segurança, achatadas pela perda de poder, já que o clima de convulsão social estava fora de controle, além da catástrofe econômica. Só uma elite ruralista, alçada a quase donos do País, seguia firme com o líder, atrás de lucros a cada mês mais astronômicos.

No dia em que deixou o governo definitivamente, Martim Coelho sequer conseguiu passar o cargo para Magalhães Neto, seu sucessor, eleito no voto de papel, mas sem fraude — ao menos as denúncias que chegaram mostraram-se infundadas. Uma multidão revoltada, ameaçava o retirante mandatário. Ele saiu por uma passagem secreta, subterrânea, e pegou um avião da Guarda Aérea Nacional para destino ignorado. Seus filhos homens haviam deixado Vera Cruz duas semanas antes da posse, assim como a esposa, Laura. Quem tinha destino ignorado era Lia, a caçula e única filha mulher.

Depois deste 1 de janeiro de 2031 muito se procurou pelo ex-comandante da Nação. E mesmo com tantas ferramentas de comunicação, que inclusive foram decisivas para mantê-lo no poder durante tanto tempo, ninguém o encontrava. O núcleo duro de seu governo estava todo espalhado pelo mundo. O mês anterior a posse de CMN viu uma verdadeira debandada de ministros e assessores do primeiro escalão. Como o processo de transição fora negado à gestão que se iniciaria, descobriu-se depois a maior queima de arquivo da história do país. No dia da posse, a Esplanada dos Ministérios era quase tão deserta quanto o novo visual da Amazônia.

Depois de muito tempo descobriu-se que Coelho entrincheirou-se em Cidade do Ouro, onde foi criado a partir dos 10 anos de idade. Várias foram as tentativas de entrevistas, inclusive de veículos de imprensa internacionais. Mas os seguranças que ele tem direito por ser ex-presidente afastam qualquer curioso. Às vezes com tiros, se o incauto insistir demais, o que levou, pouco a pouco as tentativas diminuírem e, finalmente, ninguém mais o procurar. Até que um repórter de férias na cidade resolveu se isolar no extremo sul. Numa manhã quente de janeiro viu um homem pescando amparado por uma mulher, provavelmente sua filha, e teve a certeza de que se tratava de Martim Coelho. Aguardou a pescaria terminar para abordá-lo.

- Seu Martim?

- Que é?

- O senhor é Martim de Sá Coelho?

- Sou — disse o idoso, caminhando com dificuldade, com a mulher segurando-lhe o braço direito e um homem, provavelmente o segurança, chegando para segurar o esquerdo.

- Eu poderia conversar com o senhor?

- Já está conversando, né?

O jornalista em questão era Ricardo Lemos, d’O Estado da Paulicéia. E já via o segurança largar o ex-presidente para ir ao seu encontro, provavelmente para empurrá-lo para longe do chefe.

- Espera, eu falo com você. Vem aqui com a gente. Só espera que vou ter que tomar um banho.

Entraram os quatro na casa, que possuía mais dois seguranças na entrada e outros constantemente caminhando ao redor. Todos com armas à mostra e segurando cachorros pela coleira. A casa era grande e havia outra menor uns 20 metros para trás, provavelmente onde ficavam os seguranças. Estes, ele soube depois, eram trocados a cada quatro meses por ordem do próprio Martim, cada vez mais paranoico com a sua segurança à medida que envelhecia e as artimanhas de sua gestão apareciam aos borbotões no noticiário.

Lá dentro havia duas enfermeiras responsáveis pelo asseio pessoal do ex-presidente, troca de roupas, remédios e cuidados médicos primários. Quando ele precisava de consulta, o especialista no sintoma era chamado para uma consulta particular. Todos os médicos eram conduzidos em carros blindados e com janelas totalmente escuras para nao saberem o caminho. Também eram obrigados a assinar um termo garantindo sigilo sobre o encontro e as condições do paciente. Exames fora de casa eram feitos sempre na calada da noite, fora do horário de atendimento, cercado de fortes esquemas de segurança. Em tempos de redes sociais, celulares com câmeras que quase assemelham o mundo ao Grande Irmão apresentado por George Orwell em ‘1984’ esse anonimato do antigo mandatário não deixava de ser um grande feito de segurança e logística.

A FILHA

Durante quase uma hora do banho do ex-presidente, Lemos ficou sozinho com a mulher na sala. Depois de dez minutos em que nada se falou ele reuniu coragem para indagá-la.

- Você é Lia, a filha mais nova dele, não é?

- Sou sim.

- Você está com quantos anos?

- Fiz 30 há dois meses.

A aparência cansada aparentava um pouco mais. O repórter arriscou iniciar uma conversa.

- Está com ele desde que deixou a presidência?

- Não. Saí do País na mesma época, ele ficou sozinho. Fui com minha mãe para os Estados Unidos, mas como ele começou a apresentar alguns problemas de saúde eu voltei. Meus outros irmãos e minha mãe não podem retornar ao País.

- Qual o problema de saúde dele?

- Prefiro que ele mesmo responda a você.

- Tá certo. Mas desde que você voltou não saiu mais daqui?

- Só acompanhando ele quando precisou de alguma consulta ou exame. Fico com ele 24 horas por dia. Sou a única pessoa da família que ele tem.

O jornalista sorriu. E foi perguntado o motivo.

- É que não deixa de ser irônico. Uma vez ele disse que teve quatro filhos homens e na última tinha nascido uma mulher por ele ter dado uma fraquejada. E olha aqui: é justamente o fruto dessa fraquejada que está ao lado dele na velhice…

A mulher chegou a abrir a boca, mas a resposta não saiu.

- Você chegou a casar, tem filhos?

- Não, não tenho. Eu tinha um namorado nos Estados Unidos, estávamos juntos há dois anos, mas tive que voltar e ele não quis me acompanhar.

- Você se sente feliz aqui?

- Feliz, feliz, não, né. Mas não me sinto triste. Ele é meu pai e isso não vai mudar nunca. Foi ele quem me criou e me deu uma vida confortável. Sei o que aconteceu com ele e com o País. Não posso mudar isso. Lamento por tudo, mas nunca iria virar as costas para ele. Ele me proporcionou o que muita gente nesse país não tem e eu o amo por isso. Não vou deixá-lo sozinho nunca.

A CONVERSA

Nisso o ex-presidente retorna na cadeira de rodas empurrado por uma enfermeira. A revelação da filha de que ele estava doente não mudou a forma como o repórter o encarou. A cara amarrada com os cantos dos lábios caídos estava mais acentuada, obviamente pelo envelhecimento. Os cabelos, agora mais ralos, estavam todos brancos e o rosto com muitas manchas. Sá Coelho estava magro e a voz saía rouca, falhava constantemente. E, quando se empolgava narrando algum fato, o ar faltava.

- Presidente, porque o senhor não foi embora de Vera Cruz quando deixou a presidência?

- Não queria sair daqui e também não queria ir para qualquer país.

- Por que não foi aos Estados Unidos?

- Desde que esses democratas comunistas assumiram não tive mais nenhuma relação com eles quando era presidente. Você acha que iria para lá? Prefiro ser morto aqui, embora tenha certeza que ninguém tenha coragem de fazer isso por mais que não gostem de mim.

- E tem os seguranças também, né?

- Não é por isso. Burlar segurança é fácil, embora eu sempre tenha tomado cuidado pessoalmente com a minha. Eles não me matam porque se fizerem isso vou virar um mártir. Getúlio Vargas sabia disso e foi por isso que se matou. Se me matarem vou ser pintado como coitado, como vítima de inimigos políticos e o que os meus inimigos querem é que eu seja pintado como bandido, inimigo do povo, destruidor da Ilha de Vera Cruz. Então, para eles, quanto mais eu viver, melhor.

- O senhor citou o suicídio de Vargas. Em algum momento passou pela sua cabeça fazer o mesmo?

- Claro que não. Não preciso disso, eu tenho a consciência limpa de que fiz o meu trabalho.

- Que trabalho?

- Mostrar a Vera Cruz quem são os verdadeiros veracruzenses. Foram eles que me elegeram na primeira, na segunda e me mantiveram no poder na terceira vez. Aquele movimento conservador nunca partiu de mim.

- Não? Mas o senhor era o presidente…

- Era, mas não me tornei presidente de mim mesmo. Quando eu me lancei candidato não forcei ninguém a votar em mim. Pedi e me atenderam. E se me atenderam foi porque viram em mim muita coisa que havia neles. Eu só fiz o que eles queriam.

- Eles queriam inflação alta, desemprego, serviços públicos inoperantes?

- Queriam, ué, você nunca percebeu? É por isso que eu sempre critiquei a imprensa. Vocês não conseguem interpretar sequer um candidato eleito. Depois o burrão, o que não sabia concatenar as ideias era eu. Quando qualquer candidato ganha, para qualquer cargo eletivo, ele não está lá sozinho, está carregando todo mundo que votou nele. E quem vota nele é porque se identifica com alguma coisa: o plano de governo, o comportamento do cara. Eu afirmo com toda convicção que nunca menti a meu respeito, nunca deixei de mostrar quem eu sou. Votaram em mim porque quiseram.

Coelho para de falar de repente e puxa o ar que não chega. A filha, que estava um pouco afastada, grita pela enfermeira, que retorna correndo com um cilindro de oxigênio. Ele passa cinco minutos respirando com a ajuda do cilindro. O esforço faz algumas lágrimas caírem de seus olhos.

- O que o senhor tem, presidente?

- Velhice — diz, rindo com dificuldade.

- Só isso?

- Não. Lembra da covid, né? Eu tive, você deve saber. Ela deixou uma lesão grande no meu pulmão, que terminou evoluindo para um câncer. Na época não percebi nada, nem os médicos. Tive tosse e um pouquinho de falta de ar durante uns dois dias apenas. No ano passado descobriram esse câncer.

- Papai, não era para falar sobre isso — interrompe Lia.

- Que é que tem? Vou passar por cima disso como passei por tudo.

A conversa, então, volta ao tom normal. Agora, com o jornalista querendo saber porque, durante o governo, o presidente não tomou nenhuma medida para aliviar a pobreza que se alastrava na população.

- Não fiz nada porque ninguém pediu para fazer nada. Tava todo mundo gostando. Os empresários estavam enriquecendo e o resto da população estava sempre lutando ao meu lado. Quem estava ao meu lado nunca me culpou, então qual era a minha culpa? O que eu podia fazer se os empresários preferiam exportar do que vender no mercado interno? Não sou ditador, não ia chegar, botar um cano na cabeça do sujeito e dizer: ‘Você está proibido de exportar, só vai vender aqui’? Vocês jornalistas falavam tanto que eu era autoritário, essas coisas, mas duvido que em outra época do País tivesse tanta liberdade econômica quanto no meu governo. O que eles realmente queriam eu dei. Quem foi que liberou venda de armas pra todo mundo? Quem acabou com lombada eletrônica, com teste de bafômetro? Quem revogou a PEC das domésticas? Quem queria tudo isso era a classe média e eu dei a eles.

- Mas houve desabastecimento, saques em supermercados…

- Aquilo foi uma minoria orquestrada pelos partidos de esquerda. Eram sem-teto e um punhado de sindicalistas que queriam tumultuar. Tenho certeza de que, se você não viveu, mas deve ter lido isso: a minha base de apoio na população racionou comida, do jeito que eu orientei, fizemos até uma campanha com o Minstério da Saúde.

- Sim. Eu era criança, mas lembro e depois estudei sobre isso e existem muitos vídeos com essa campanha.

- Exatamente, era a campanha Vera Cruz em Forma para deixar o país com o mais baixo nível de obesidade do mundo. Tinha um monte de doença consequência de obesidade: pressão alta, coração, diabetes, essas coisas. Quem sempre votou em mim, entendeu o recado.

- Mas tiveram outras consequências como aumento das epidemias de gripe, anemia, coisa que não existia aqui e a gente só via em países africanos pobres. O rendimento escolar no Ideb baixou e muitos especialistas condicionaram isso a um longo período de restrição de alguns nutrientes, como fósforo e proteínas, principalmente as mais completas, de origem animal, como ovo e leite.

- Isso é mentira, ninguém nunca provou cientificamente. Lembro que um jornalista me questionou isso uma vez eu disse a ele que as crianças passassem a comer palitos de fósforo para ficarem mais inteligentes, AHAHAHAHAHAHAHAHA!!!!!

A gargalhada o fez perder o ar novamente e o cilindro entrou em ação para mais cinco minutos de silêncio.

- E sabe o que é melhor? Teve um monte de gente que deu fósforo pros filhos, AHAHAHAHAHAAH. Deus, eu não posso lembrar dessas coisas porque começo a rir sem parar, vou terminar morrendo sufocado no meu próprio riso, AHAHAHAHAHAHAHA!!!!

- E a pandemia, o senhor acredita que fez o certo?

Até o momento, as respostas saíam de bate-pronto. Nesta, ele aproveitou a nova falta de ar para pensar na resposta. Põe a mão no queixo, fita o infinito como se procurasse lembrar dos 500 mil mortos por causa da Covid-19 nos três anos em que a doença assolou o País, terminando apenas no ano da primeira reeleição, em 2022.

- Bom, como agora não vai fazer diferença mesmo, vou contar a você. É o seguinte: a única maneira que eu tinha de me manter no poder era mantendo a agitação do País. Foi isso que me levou à eleição, aproveitar aquele clima de guerra que vinha desde aqueles protestos de 2013. E em minha defesa quero lembrar que não fui eu quem começou isso. Abriram uma porta, eu entrei. Para continuar era preciso manter o país dividido, por isso tudo que era discutido meu filho transformava um confronto. Eu sou capitão do exército, porra, tenho que viver em guerra! Consegui isso até quando a seleção veracruzense ganhou a Copa Ática em 2019. O técnico não quis apertar minha mão, no outro dia era porrada nele nas redes sociais. E sabe quem alimentava tudo isso?

- Seu filho mais novo…

- Que nada! Vocês, da imprensa. Sempre se achavam os intelectuais, os sabe-tudo, mas faziam exatamente do jeito que era planejado, nunca vi tanta gente burra junta. E adoravam dizer que o burrão era eu. Talvez eu até seja, mas para manter meus votos eu sempre soube o que tinha que fazer. Não poderia haver paz no País. E aí veio aquele vírus, que caiu do céu.

- Como caiu do céu se matou tanta gente, deixou um monte no hospital, acabou com o sistema público e privado de saúde?

- E daí? Não dá pra fazer omelete sem quebrar os ovos, né? Morreu um monte, eu sei, mas considero todos eles heróis da pátria. Eles se sacrificaram por mim. Imagina se fosse só uma gripezinha, como eu dizia, a gente ia quebrar a cabeça para criar uma guerra toda semana, ia terminar ficando manjado. Do jeito que foi era um falando mal da China aqui, outro dizendo que não havia racismo ali, o povo enchendo meu saco quando algum marido matasse a mulher ou a Polícia do Rio entrasse na favela esculachando todo mundo. Nem daria para dar conta dessa agenda toda. Veio o vírus e resolveu tudo de uma vez porque em torno dele tinha remédio, tratamento, compra de equipamentos e ainda gente em outros países, principalmente nos Estados Unidos com um discurso igual. Se a gente tivesse feito tudo como deveria, o impacto no nosso país seria menor, as ideias do Pedro Sedeg não consertariam a economia, o povo iria ficar puto comigo e eu perderia para qualquer um que dissesse que eu sou feio. Tivemos condições de botar a culpa de tudo nos outros: governadores, prefeitos, Congresso, STF até 2022. Aí entramos com o plano que deveria ter sido executado em 2020 e saí como herói para ganhar. Tão simples e ninguém percebeu. Realmente nunca esse país teve um presidente tão genial como eu.

- Mas teve o segundo mandato, quando esse problema econômico se agravou.

- Teve, mas era fácil culpar por uma crise de saúde que havia durado três anos. Não dava para recuperar porque o que a gente tinha para fazer era vender um monte de estatal, achatar salário dos funcionários públicos e cortar os investimentos do governo.

- O problema é que as empresas quebraram. O consumo era muito baixo e os investidores ficaram muito cautelosos.

- Ficaram com o segundo lugar na lista de culpados. E tanto isso foi verdade que o Congresso não teve coragem de barrar a PEC da segunda reeleição. Eu tinha o apoio porque o povo sempre acreditou em mim.

- O senhor não acha que mentiu para o povo ou pelo menos para a parcela que o apoiava?

- Não acho que era mentira, era apenas a minha versão dos fatos. Comprava ela quem queria. Como eu disse no início dessa conversa, eu nuca obriguei ninguém a acreditar em mim.

- O senhor se arrepende de alguma coisa?

- Claro que não. Eu representei metade do País no tempo em que estive lá em cima. Eu dava o que eles queriam. Eles faziam o que eu autorizava e o melhor é que muitas vezes sem precisar autorizar falado ou por escrito. Eles sabiam o que eu representava e colocavam isso em prática. E eu sei que ainda existe muita gente com saudade daquele tempo. Se podia falar tudo, fazer tudo, sem essas frescuras de códigos de conduta, politicamente correto, essas frescuras.

Lia, que esfregava as mãos desde o início da conversa, não aguentou mais e interrompeu.

- Já está bom, né, papai? Agora é hora de o senhor descansar, tomar seus remédios e se preparar para o almoço. O senhor vai me desculpar, mas nem podemos convidá-lo.

- Não tem problema, a casa onde estou fica perto daqui. Obrigado pela conversa, presidente.

- Cuidado com o que vai escrever, hein? Vocês adoram distorcer os fatos.

A MORTE

O repórter retirou-se, mas deixou um cartão com seus contatos em cima da mesa. Viu de relance, quando segurança fechava a porta na sua cara, que Lia o guardara no bolso. Ele esperava algum contato quando a reportagem saísse.

Mas não houve nem um sinal quando todos os assuntos abordados na entrevista ganharam as telas de computadores e telefones. O texto foi reproduzido no mundo inteiro, com a única foto que ele conseguiu, com Martim quase completamente de costas, quando era empurrado pela filha no corredor, quando ele deixava a casa. Jornalistas de todos os lugares o procuravam para perguntar como conseguira tal proeza. Ele respondia que da mesma forma que estava narrado na reportagem, sem mais nem menos.

Dois meses depois, ele recebia uma ligação de um número desconhecido enquanto fazia uma pausa entre um texto e outro na redação. Atendeu e uma voz de mulher identificou-se como Lia, a filha de Martim.

- Ele acabou de morrer. Uma parada cardiorrespiratória.

A notícia se alastrou com uma velocidade nunca vista até então. Alguns lamentavam, multidões exultavam. Ruas eram invadidas por milhares comemorando. “Uh, já morreu! Uh, já morreu!” era quase um uníssono nacional. O presidente Magalhães Neto entrou em contato pessoalmente com o repórter para falar com a filha. Os outros filhos ficaram sabendo, mas não se manifestaram. O medo da prisão era maior. Magalhães conversou rapidamente e convenceu Lia a fazer o velório e enterrá-lo em Cerralândia, a capital. Apesar dos protestos nas redes sociais, o chefe da nação alegou que, bem ou mal, tratava-se de um ex-presidente, aliás, o único vivo, e merecia as honrarias no último ato.

O avião com o corpo e a filha chegou no dia seguinte, com uma multidão do lado de fora do aeroporto xingando, carregando cartazes com palavras ofensivas e montagens com a figura do falecido. Por mais que a Guarda Nacional tenha isolado, Lia viu, ainda que de passagem, o suficiente para sentir as pernas tremerem e perder o ar por alguns segundos. Terminou desmaiando enquanto caminhava para o carro da guarda. Ele cresceu sabendo que o pai era odiado por uma grande maioria da população, mas, na morte, acreditava que haveria um pouco de empatia, não com ele, mas com ela, que não esperava pagar uma conta que não fizera.

Depois de recuperada a filha, o comboio rumou pelas ruas isoladas da capital até o Palácio dos Varões, sede do governo criada por Martim e que Maglhães prometera mudar de nome. O esquife foi colocado no salão nobre. De cada lado, uma coroa de flores — do presidente e da filha. Embora todos os governadores tenham sido comunicados e convidados para o funeral, nenhum respondeu que sim nem que não. Ministros, deputados, senadores e membros da Grande Corte, o Poder Judiciário, também foram avisados. O tempo passava e ninguém aparecia. A meio quilômetro dali, a mesma turba exaltada do aeroporto festejava. Artistas locais chegavam com o próprio equipamento para fazer uma espécie de festival improvisado. Nenhuma mensagem de condolências foi enviada por qualquer líder do exterior.

A celebração entraria pela madrugada, assim como o velório. Extenuados, o presidente e Lia deixaram o local no início da noite. Ficaram apenas membros da Guarda para proteger o caixão e evitar a invasão de algum adversário do ex-comandante mais exaltado. Mas foi uma noite calma. Dentro do Palácio, o presidente telefonava aos seus auxiliares, questionando o motivo de ninguém ter aparecido. Passou a noite inteira entre dezenas de ligações. Com algumas variações, as justificativas rondavam o mesmo tema: “Não quero aproximação com esse sujeito nem depois de morto, a maioria do povo o odeia e esse ano tem eleição, não posso fazer isso com meus candidatos”. Outros alegavam compromissos particulares, doenças na família ou estarem em viagem.

Na hora marcada para sair o cortejo, novamente os mesmos personagens do dia anterior. Todo trajeto até o cemitério fora isolado, mas alguns conseguiram burlar a segurança. Pedras, ovos até sacos com excremento foram atirados no carro dos bombeiros que carregava o ataúde.

No cemitério foi tudo muito rápido. Todo local ficou isolado num perímetro de 500 metros. Lá dentro, apenas o presidente, a filha e alguns seguranças. Vendo a mulher com a face tão transfigurada pela tristeza e cansaço, Magalhães disse suas únicas palavras naquela manhã extremamente seca na capital de Vera Cruz:

- Convidei muita gente, inclusive antigos aliados do seu pai. Todos disseram não querer aparecer com medo de violência.

- Eu entendo, não se preocupe. Pelo menos agora todos vamos ter um pouco de paz.

FIM

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