O brasileiro é a mais eficiente máquina de matar já criada

Wladmir Paulino
3 min readMar 18, 2021

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Como na música de Raul Seixas, eu vi muita coisa desde janeiro de 2019. E muito, muito mais desde 2020. As cenas mais tristes que jamais imaginaria ver no Brasil. Gente sofrendo, sem emprego, sem comida, sem ar. Gente chorando porque o pai, a mãe, o irmão, tio, sobrinho, primo ou amigo estava com um vírus letal no corpo. Gente enlouquecendo porque tinha certeza de que iria morrer.

Mas nada doeu mais do que essa:

É um idoso, que não aparenta ter mais de 1,70m. Tudo nele sugere fragilidade: a altura, o físico mirrado e, principalmente, a atitude. Ele faz um esforço incomum para agredir o fotógrafo do Estado de Minas com um capacete. As duas mãos agarradas ao objeto, o apoio no ombro mostram que, a pancada pouco estrago faria, até por que dificilmente atingiria o alvo.

O que fica disso é o ódio. Está estampado nos olhinhos apertados dele quando faz o esforço para erguer o capacete. Foi esse ódio que tirou o ar de duzentos e tantos mil brasileiros, que serão trezentos mil daqui a pouco. Foi esse ódio que nos fez tirar as máscaras — real e metaforicamente falando. Se esse homem realizou esse trabalho hercúleo para afastar uma pessoa que estava apenas cumprindo seu trabalho de registrar a história, o que ele faria se tivesse nas mãos um pedaço de madeira? Um canivete? Ou se ele tivesse um pouco mais de força para fazer do capacete um flagelo?

Tanto ódio sempre esteve por aí. Aquele senhor do capacete não aprendeu a odiar depois de 60, 70 anos. O ódio está entranhado dentro dele desde sempre. Só precisava de alguém que abrisse a porta e o convidasse a entrar. Esse alguém chegou.

Para alguns pode parecer exagero apontar isso comparando o caos em Manaus ou os animais morrendo queimados na Amazônia. Ou quem sabe a longa cortina de escuridão em Rio Branco.

Só que o buraco pode ficar bem mais embaixo. Esse ódio é um vírus, que se alastra com tanta velocidade como o SarsCov-2. A diferença é que ele não vai fazer ninguém ter febre, tossir ou perder o ar. Ele é sorrateiro, vai consumindo sem que se perceba. E aí, depois de tanto apanhar, o fotógrafo, um dia, vai usar a mesma arma contra o agressor. Porque ele é humano, porque ele sente dor. E ninguém quer sentir dor. Ninguém quer sofrer pelo simples fato de existir. Muita gente vai espalhá-lo por ser assintomática. Sair à rua será um risco, não por se deparar com alguém armado que queria o celular e carteira, mas por não ser mais permitido olhar para alguém sem que o ódio suba às entranhas. Expressões como ‘por favor’ e ‘com licença’ ganharão o mesmo peso das mais cabeludas ofensas. O ‘desculpe’ será extirpado do nosso vocabulário porque o ato que o antecede estará sujeito a pena de morte.

O Brasil, a partir de 2018, assumiu seu lado mais sombrio com esse vírus, finalmente alforriado. Hoje, ele encontra-se livre, leve e solto em 30% da população. Nunca passamos por uma guerra civil. Aliás, em matéria de guerra somos pouquíssimo experientes. Na verdade, na verdade, a única que podemos chamar de nossa foi a Guerra do Paraguai, quando ainda éramos uma monarquia. Depois disso, só figuração nas duas guerras mundiais.

Não temos o espírito beligerante como nossos vizinhos da América do Norte nem os obstinados do Oriente Médio. Essa pusilanimidade para fora transforma-se em instinto assassino para dentro. Queremos matar, somos uma máquina de matar mal construída. Ainda. Queremos matar o cara que passou raspando nosso carro, queremos matar guarda que nos multou injustamente. E de uns tempos para cá também queremos matar quem nos pede para usar máscara, quem nos manda ficar em casa, quem quer nos vacinar para não morrermos sem ar. Queremos matar quem chama alguém de feio. É tanta vontade de matar o semelhante que, ao fim e ao cabo, o sonho do brasileiro deve ser viver sozinho.

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