O Goleiro Chama Gol
Tudo que envolve o goleiro, mais cedo ou mais tarde, ganha um viés amaldiçoado, a começar pela grama, que, insistiam os antigos cronistas, teimava em não crescer onde o único jogador com permissão a usar as mãos, pisava. À carga de infalibilidade imposta aos camisas 1 — que hoje em dia pouco usam o número — soma-se uma categoria, ainda mais cruel: o Chama Gol.
Sim, amigos, ele existe e não é de hoje. O Chama Gol é tão antigo quanto o milagreiro. Na verdade, é sua antítese. Enquanto o milagreiro faz a defesa impossível, o Chama Gol sofre o gol impossível de ser sofrido. Então, diria alguém, seria o Chama Gol na verdade um frangueiro? Não, a diferença existe. É uma questão de timming e técnica. Ela, a síndrome do Goleiro Chama Gol, acomete, geralmente, aqueles que amargam a reserva desde que são promovidos das categorias de base para o profissional. É como se houvesse um vírus universal nos bancos de reservas, que, inclusive, não respeita condição financeira ou idioma. Ele tanto pode estar no banco do Santiago Bernabéu quanto na Rua Javari.
Vamos primeiro ao timming, que é a questão crucial. O Frangueiro não tem hora nem escolhe o jogo específico para errar. A frangueirice não é estar, é ser. Não existe meio-termo: ou se é frangueiro ou não é. O frangueiro não faz diferença entre o amistoso para apresentar o time no início da temporada ou a final da Copa do Mundo. O frangueiro não treme, não fica ansioso, não dá o famoso cagaço. Ele frangueira porque é só isso que sabe fazer, é sua missão de vida e frangueirará até a consumação dos séculos.
E o Chama Gol? A diferença é enorme. O Chama Gol, como o nome define, pede para levar o gol justamente no momento crucial. O Chama Gol não leva gol aos cinco minutos do primeiro tempo, apenas aos 44 do segundo e sempre quando o jogo está empatado ou seu time vencendo por apenas um gol de vantagem.
O gol tomado pelo Chama Gol jamais será indiferente, tanto para quem leva quanto para quem marca.
Se o time do nosso amigo estiver vencendo por 3x0 ele pode até levar um gol aos 44. E ninguém sequer vai lembrar quem foi o culpado.
Agora vamos entrar na questão técnica.
O Chama Gol não toma gol entre as pernas, não joga a bola para as próprias redes ao tentar um munhecaço nem perde a bola quando vai driblar o atacante adversário. Isso é exagerado demais para ele. O Chama Gol é o goleiro da sutileza. É o que sai do gol quando não devia ou fica quando deveria sair naquele último suspiro do adversário. É aquele que sai correndo para dividir com o atacante adversário que iria para a linha de fundo e, mesmo com um zagueiro de seu time no encalço, comete o pênalti burro e desnecessário.
O Chama Gol — a partir deste parágrafo vamos identificá-lo apenas pelas iniciais CG para não ficar repetitivo — não vê um chute fraco passar entre as mãos, ele nunca será chamado de “mão de lodo”, “mão de quiabo” ou “mão de sabão”. Aliás, esses e outros apelidos pejorativos impostos ao Frangueiro não pegam porque O CG não ostenta sua condição.
Muitas vezes você vai demorar muitas temporadas — e amargar alguns pares de derrotas — até perceber que o seu guarda-redes pertence a essa estirpe.
O gol típico que o Chama Gol leva é o da bola desviada. O atacante, meia ou volante adversário chuta lá da casa de chapéu e a bola bate nas costas de alguém — adversário ou próprio companheiro — em alguns casos mais emblemáticos, o desvio é nas nádegas. Ou no meio daquele furdunço no escanteio, quando a bola encarna a ferrança do fliperama sai batendo em Deus e o mundo até entrar.
A bola que ronda nosso desafortunado jogador tem um faro infalível para o gol. Não dizem que os grandes artilheiros cheiram a gol? Pois o CG fede.
A bola, quando chega perto dele, encarna um Marcelo Ramos, Fred ou Diego Souza; nunca Odvan, Geromel ou Ronaldo Angelim.
Ele é um derrotado e carrega tal expressão no olhar, mas consegue dissimular porque sua chaga pode ficar oculta por muito tempo — até anos. Vai depender muito do restante do time. Se está num grupo forte, as vitórias e conquistas que o pessoal da linha empilha vão camuflando os gols chamados. Quando o sintoma aparece, se muito, é visto como azar ou obra do Rodrigueano Sobrenatural de Almeida.
Tem remédio? Não. O vírus que entranha-se no CG o faz por afinidade. A receita talvez seja cruel, mas não se deve deixá-lo como titular muito tempo. O papel dele é o bom de grupo, o cara que faz todo mundo rir, agita a concentração e puxa o pagode no vestiário após um título. E assim deve ser mantido.